[1.39] A novidade das legislativas: PSD nunca governou sem mandar no partido à sua direita
Foi governo ou em maioria absoluta ou coligação "engolindo" o partido mais pequeno e fofo à direita. O PSD pisa terreno novo com o Chega. Terá de aprender a diferença entre mandar e governar.
A AD venceu as eleições por uma margem mínima e o PSD deverá ser chamado a apresentar um governo com Luís Montenegro como Primeiro-Ministro. O PS passa à oposição. Este é o resultado das eleições legislativas mais concorridas deste século, com uma taxa de participação de 66,23%. É? Bem, não é só. Há três novidades no sistema partidário. E ainda: 10 ideias sobre as legislativas e as respostas a perguntas menos prováveis nos mainstream media.
ANÁLISE
A novidade das legislativas: PSD nunca governou sem mandar no partido à sua direita
A vitória da AD nas eleições de 10 de março de 2024 está longe de corresponder quer às expetativas dos seus líderes, que sofreram ao longo de uma noite comprida entre uma projeção de números confortáveis e uma contagem que foi reduzindo a margem de confiança até uns escassos dois deputados. As imagens de alegria da noite de vitória compreendem-se num partido afastado do poder há oito anos. Mas a segunda-feira amanheceu menos alegre. A perspetiva da governação é tudo menos fácil.
Se procurarmos logo nos discursos de vitória dos líderes dos dois principais partidos — cujos grupos parlamentares terão uma composição demasiado semelhante, na sua fraqueza numérica e no curtíssimo intervalo entre ambos — podemos encontrar os princípios da incerteza sobre o próximo período de governação. Pedro Nuno Santos deixou implícito que espera votar contra o próximo Orçamento de Estado, lá para novembro, no fundo dando pouco mais de seis meses de respiração ao Governo de Montenegro. E este, pelo seu lado, deixou implícita a linha de argumentação que será tornada explícita daqui em diante e até ao fim do ano para a hipótese provável de irmos a eleições dentro de um ano, caso esse orçamento chumbe no Parlamento. É ela: “não nos deixam governar”. E com ela pensa apresentar-se ao eleitorado para obter a maioria reforçada que lhe faltou ontem.
E porque faltou? Porque não conseguiu o PSD capitalizar os votos que debandaram aos milhares de um desgastado PS? Porque, mesmo com o reforço do CDS para aproveitar o nosso método de distribuição de mandatos, só captou oito dos 44 deputados que o PS perdeu?
Porque um partido à sua direita os capitalizou todos. O Chega ganhou 36 deputados, passando o seu grupo parlamentar de 12 para 48. E se todos ficámos impressionados e a discutir porque avançou a extrema-direita, enquanto a discussão continua Luís Montenegro (e o Presidente da República) têm de digerir um facto que passa despercebido mas é mais importante, neste momento de formação do governo.
É que a subida do partido à direita do PSD, que nasceu contra o PSD, roubou espaço ao PSD e contra o PSD medrou, roubando-lhe o espaço nos palcos, nos eleitores e nos assentos da Assembleia da República, criou um facto inédito em 50 anos de democracia: o PSD terá de formar um governo como nunca antes lhe sucedeu, um governo encaixado entre o centro-esquerda e a direita, um governo em que terá forçosamente de gerir relações — sendo que de todas as vezes que governou desde 1974 o fez ou na condição de mandante de maiorias absolutas, ou como “rei” de uma coligação em que o segundo partido da direita estava “no bolso”, tanto programaticamente como, mais importante no contexto, numericamente.
Este cenário é inédito à direita. E se o PS passou toda a sua vida governativa a ter de gerir relações à esquerda e à direita — desde a má experiência com o CDS até à “geringonça” de bons resultados no primeiro governo passando pelo próprio PSD com o famoso governo de “bloco central” com Mário Soares a lidar com Mota Pinto —, esse capital de experiência está ausente do “adn” do PSD.
O PS teve inclusive de gerir as tendências mais extremas à sua esquerda — falo do PCP, com quem teve uma relação tensa desde o segundo dia da democracia portuguesa. Coisa que nunca o PSD teve de lidar.
Esta novidade é um escolho imediato, na formação do governo, mas também nos próximos meses e anos. E o PSD joga mais do que um governo nesse novo tabuleiro: joga a sobrevivência da sua relevância no sistema partidário português e europeu. É por isso, e só por isso, que o PSD permitirá a Luís Montenegro que mantenha o “não é não”, e mesmo assim com muita dificuldade interna: há demasiada gente no partido desejosa de experimentar o governo com o Chega, acreditando que consegue domar o tigre da extrema-direita.
[ Nota pessoal: não consegue. O tigre não é um gatinho português, é um animal selvagem de importação, muito bem financiado e que se alimenta numa selva que não é sequer compreendida pelos grandes — e antigos — partidos. ]
Já Chega
A segunda novidade já está mais ou menos expressa nos parágrafos anteriores. São 48 deputados, 20% do Parlamento, uma vice-presidência pelo menos, isto é um assalto da extrema-direita à casa da democracia. Não fiquemos só a olhar para o Governo. Não fiquemos a pensar que o “não” de Montenegro conduzirá o Chega a um beco sem saída. O Parlamento é onde se legisla. Há muito direito por reduzir, muito benefício social por terminar, muito estado policial para fabricar. O Chega tem, como bem sabemos, um plano.
Livre: tímida, mas renovação à esquerda
A terceira novidade é a subida do Livre, o partido que mais cresce depois do Chega. Passou aos quatro deputados, que dão lugar a um grupo parlamentar já com alguma capacidade de influência — historicamente comprovada pelo “partido do táxi”, que foi o CDS quando tinha quatro deputados, e pelo PAN na sua expressão máxima. Esta subida do Livre compensa — com o ganho de um deputado suplementar para a bancada à esquerda do PS, de um total de 12 para 13 — a perda de dois deputados do PCP. Esta não se pode considerar um novidade: o lento declínio eleitoral do PCP é uma tendência e não uma pontualidade.
Esta novidade terá outro significado ainda. Representa, creio, uma importante e urgente renovação à esquerda, tanto identitária como programática. Numa perspetiva de espelho, o Livre está para o PCP como do lado direito do espectro a IL esteve para o CDS. Partidos do século XXI, alinhados com os cidadãos ativos do século XXI e a sua atmosfera individualizante, que vão substituindo partidos do século XX, alinhados com uma atmosfera social hoje largamente anacrónica, além de cumpridos no essencial as suas propostas.
Balanço: dez ideias sobre as legislativas
O crescimento do Chega deve-se, em parte, à incapacidade da esquerda em compreender e dialogar com potenciais eleitores descontentes, focando-se apenas na sua agenda sem a explicar de forma eficaz.
Muitos eleitores que anteriormente votavam em partidos de esquerda, como o PCP, BE e PS, votaram no Chega nestas eleições, contrariando a ideia de que tal nunca aconteceria. É necessário ouvi-los e compreender as suas motivações.
Uma parte significativa dos eleitores do Chega pode ser recuperada para a democracia, mas é necessário compreender as suas razões e resolver problemas persistentes. A estigmatização e o discurso de trincheira não são a solução.
A esquerda é responsável por parte do crescimento do Chega devido a fatores como a incapacidade de entendimento após a "Geringonça", a gestão amadora da maioria absoluta, posições controversas sobre a guerra na Ucrânia e a exposição arrogante da sua agenda.
A posição do PCP sobre a guerra na Ucrânia é algo que muitos eleitores de esquerda não esquecerão, contribuindo para a perda de votos do partido.
Apesar da euforia, não é claro o que o Chega fará com a sua grande bancada parlamentar, dado que Montenegro mantém a recusa de acordos. O partido pode estar a celebrar prematuramente.
Montenegro fez uma boa campanha, e a recusa de acordos com o Chega é uma tática para evitar danos ao PSD, não uma convicção.
O jornalismo focado em declarações e casos menores, negligenciando o escrutínio de fundo e o país real, também contribuiu para o crescimento do Chega.
O discurso de Pedro Nuno Santos foi claro e frontal, reconhecendo a necessidade de o PS recuperar a confiança dos eleitores descontentes, um trabalho que pode levar uma geração.
O Livre representa uma esquerda renovada, que aprende com os erros, e pode ser o início de um novo caminho para muitos eleitores.
Original desenvolvido: Miguel Carvalho no Facebook
As perguntas que os resultados eleitorais suscitam e as respostas
A direita pode agora mudar a Constituição?
Não. Tem 135 deputados e mesmo somando os 4 em falta dos círculos fora do território nacional chegaria a 139 — faltam 15 deputados para os 154 necessários.
O antigo "bloco central" perdeu a possibilidade de mudar a Constituição?
Não. PS, PSD e CDS somam mais dois deputados que os 154 necessários. E nenhuma configuração de mandatos pode votar alterações sem incluir o PS e o PSD. O entendimento entre os dois maiores partidos mantém a CRP sob controlo.
É verdade que a esquerda tem mais deputados que a direita democrática?
Sim, é. PSD + CDS + IL = 87 (88 a 91 com os círculos extra-territoriais)
PS + BE + L + PCP = 90 (91 a 94 idem). E não está o PAN, que somaria mais 1 deputado.
Contudo, há um caso extremamente improvável, ainda que numericamente possível, em que poderíamos ter empate: se os 4 deputados de Europa e Fora da Europa fossem todos para o PSD.
É verdade que nunca tivemos um terceiro partido tão forte como o Chega?
É… complicado. A APU (PCP + MDP/CDE, partido dissolvido em 1994) teve 18,8% — mais duas décimas — e 47 mandatos num parlamento de 250 deputados. Ou seja, teve maior percentagem de votos, mas uma bancada percentualmente menor.
Convém adicionar que o PCP, em diversas configurações e anos seguidos, teve acima de 500.000 votos e 30 deputados.
Convém também dizer que o CH é o quarto partido a conquistar o terceiro lugar com um grupo parlamentar importante, atrás de PS e PSD. O próprio CDS aí esteve com grupos parlamentares de mais de 30 deputados umas vezes e mais de 20 outras, ocupando o terceiro lugar por vários anos. E há o fenómeno PRD, que de 7 deputados em 1987 passou para 45 mandatos em 1987, obtendo 17,92% dos votos. E h´sa,
OPINIÕES
António Barreto questiona as recentes crises políticas em Portugal e como estas geraram instabilidade e fragilidade em Portugal. Leia as suas considerações no Público.
Ricardo Paes Mamede analisa os resultados das eleições de 2022 e a queda do PS, questionando as causas por trás destas mudanças. Leia a sua análise no Público.
Filipe Luís, na Visão, reflete sobre o impacto do Chega como o grande vencedor das eleições e as implicações para o futuro do governo português.
Ana Sá Lopes destaca a política de Benjamin Netanyahu em relação à Gaza, e a reacção internacional a estas práticas. Leia os seus pensamentos no Público.
CURTAS
Após a introdução do direito ao aborto na Constituição, Emmanuel Macron apresentou um projeto de lei que, em condições estritas, pode permitir a administração de substância letal a doentes terminais, evitando os termos "eutanásia" e "suicídio assistido". Este projeto seguirá para o Conselho de Estado e espera-se que chegue ao Conselho de Ministros e à Assembleia Nacional nos próximos meses. • DN
O presidente checo, Petr Pavel, afirmou não ver impedimentos à presença de tropas da NATO na Ucrânia, distinguindo entre apoio e envio de unidades de combate. Remeteu para experiências passadas de missões de treino da NATO no país após a anexação da Crimeia pela Rússia. • Lusa
Os mercados financeiros reagiram com tranquilidade aos resultados eleitorais em Portugal, registrando uma ligeira desvalorização na bolsa de Lisboa e um pequeno aumento nas taxas de juro da dívida pública, em linha com as tendências europeias. • Público
Os ministros do Emprego e Assuntos Sociais da UE aprovaram uma nova lei para proteger os trabalhadores de plataformas eletrónicas, como a Uber e a Glovo, visando melhorar as suas condições laborais. • CNNP
Marcelo Rebelo de Sousa, anunciou que indigitará o novo primeiro-ministro após os resultados das eleições da emigração, previstos para 20 de março. Até lá, ouvirá os partidos com representação parlamentar. • DN
A Suécia tornou-se o 32.º membro da NATO com o hasteamento da sua bandeira na sede da aliança em Bruxelas, dois anos após a invasão da Ucrânia pela Rússia. A adesão reflete uma mudança na estratégia militar sueca. • Lusa
O primeiro-ministro de Cabo Verde, Ulisses Correia e Silva, expressou a esperança de que o próximo Governo português adote políticas para garantir a integração e proteção dos imigrantes, incluindo a numerosa comunidade cabo-verdiana em Portugal. • Lusa
ETIQUETAS
Uma exposição
“Hierophanies”, Brotéria, Lisboa, até 1 abril 2024. “Os gestos reveladores da arte: há Hierophanies na Brotéria. Em Hierophanies, na galeria da Brotéria (centro cultural dos jesuítas portugueses), a curadora Sara Castelo Banco volta a demonstrar curiosidade, capacidade de encontrar conexões entre objectos e experiências, engenho para construir um discurso coerente à volta de um tema (sem que as obras o ilustrem).”
Uma peça de teatro
Girafas, de Pau Miró, Artistas Unidos - Teatro da Politécnica, Lisboa, até 30 de março 2024. Tradução Joana Frazão Com Eduarda Arriaga, Gonçalo Norton, João Vicente, Pedro Caeiro e Vicente Wallenstein e vozes de Andreia Bento, Diana César, Eduarda Arriaga, Inês Pereira, Joana Pajuelo, João Meireles, Nuno Gonçalo Rodrigues e Simon Frankel. “Girafas debruça-se sobre as relações de um casal que tenta ter um filho que tarda. No bairro Raval, na Barcelona dos anos 50, o ar bafiento da ditadura de Franco suscita a necessidade de escape, de criar espaços seguros e de extravasar.”
Um livro
Maniac. Autoria: Benjamín Labatut Tradução de José Miguel Silva Editora: Relógio d’Água, 2024. “Benjamín Labatut: ‘O segredo do mal é que ele é necessário — e isso é incrivelmente doloroso’. Von Neumann é a personagem que directa ou indirectamente atravessa o romance através dos modos como o olharam e com ele conviveram familiares, colegas de trabalho. Com ele, entramos no mundo dos dilemas, das obsessões e dos paradoxos das descobertas tecnológicas, saindo da Europa de antes da II Guerra Mundial, parando nos Estados Unidos e no projecto que levou à criação da bomba atómica, até aos jogos que serviram de ensaio ao que hoje designamos por inteligência artificial, aplicados a um jogo popular na Ásia, o go.” Isabel Lucas
RELEMBRANDO
Não lemos todas as newsletters todos os dias, naturalmente… Podem ter-lhe escapado estes assuntos:
[1.38] Campanha correu melhor, Parlamento vira à direita, governo indefinido, Ventura maior ganhador. Faltam três dias para as legislativas. Nos balanços da campanha eleitoral há três consensos e um equívoco. As expetativas foram tudo nesta campanha.
[1.37] AD ou PS? Empate técnico, isto é, tudo em aberto para as eleições do próximo domingo. AD recupera um pouco mas segue com menos 1% de intenções do que votos teve em 2022. IL também tem menos 1%. A direita só cresce pelo Chega. À esquerda só perde votos o PS.
[1.33] Finalmente, Algarve: água mais cara e racionada, e concurso aberto para a dessalinizadora. Governo apresenta plano doloroso com 42 medidas que vão do aumento do preço à racionalização do consumo. Mas finalmente o Algarve, contribuinte líquido do Estado, merece atenção.
[1.32] Sim, é possível destronar a extrema-direita. A ex-comunista alemã Sahra Wagenknecht mostra como. A receita é simples: à esquerda na economia, à direita em assuntos sociais como os imigrantes. Com essa "pedrada" Wagenknecht deixa dois coelhos a coxear: a AfD e o seu antigo partido, Die Linke.