[1.28] A entrada da extrema-direita no Governo é praticamente inevitável
A direita deverá o crescimento eleitoral todo ao Chega, o terceiro partido mais votado deste século. Não há desculpas, cenários ou artimanhas para o marginalizar. Nem vontade, na AD.
Pedir ao PS que evite a entrada da extrema-direita no Governo é uma forma de colocar pressão em fase de campanha eleitoral que a AD está a usar, explorando a boa vontade de cidadãos preocupados. Mas não passa disso. Junte-se à atualidade da importância crescente das narrativas de extrema-direita, em Portugal como na União, uma análise factual do passado eleitoral, medindo a “ruína do bipartidarismo”, as artimanhas históricas do “cordão sanitário” e do “arco da governação”, e avaliando a evolução do terceiro partido ao longo da democracia, e conclui-se pela inevitabilidade. Com mais ou menos dor.
A melhor forma de abordar este tema é hoje através de uma crónica de opinião — a primeira de VamoLáVer, que as terá apenas ocasionalmente, mantendo o foco no seu objetivo principal: a informação.
OPINIÃO
A inevitabilidade da entrada da extrema-direita no Governo
Paulo Querido
“O ponto que Pedro Nuno Santos deve ponderar é este: deve ou não deve o PS fazer tudo o que está ao seu alcance para afastar o partido de Ventura dos círculos do poder político? Quem genuinamente está preocupado com a qualidade da democracia e a sanidade no debate político tem uma resposta: deve”, defende Manuel Carvalho no Público (O elefante mudou-se para a sala do PS, 08/02, artigo fechado).
A frase é verdadeira e consensual, diria. Só que não serve de lastro ao artigo. Manuel Carvalho acha que o elefante, o CH, passou da sala do PSD para a sala do PS e que este deve fazer tudo para evitar que o CH vá para o Governo. O âmbito do artigo é o resultado das eleições antecipadas nos Açores. Horas depois, já hoje (09/02), o líder do PS-Açores veiculou a decisão unânime dos órgãos diretivos regionais: não, o PS-Açores não viabilizará o governo minoritário da coligação PSD/CDS/PPM. Vasco Cordeiro acusou mesmo PSD-Madeira de fazer chantagem, querendo empurrar para a esquerda o ónus da entrada da extrema-direita na governação açoriana.
Ficou quase tudo dito. O que não foi dito mas fica implícito: a tentativa de colar ao PS o ónus do transporte da extrema-direita para os ministérios é meramente uma encenação própria de campanha eleitoral por parte da AD, que efetivamente não tem nenhuma resistência mental ou outra ao avanço do CH, para além dos votos que acha que lhe deviam pertencer.
Voltando ao assunto: se a quantidade de pessoas que se preocupa com a qualidade da democracia e a sanidade no debate político fosse estatisticamente relevante, em primeiro lugar o CH jamais teria passado de um partido da franja extremista direita.
O elefante só existe na pequena sala dos cidadãos que têm da política um exercício distante, sobretudo teórico, intelectualizado e preocupado. Uma esclarecida plêiade, mas minúscula. E infelizmente desapoderada pelos tempos, como vai ficar claro ao longo dos próximos parágrafos.
O passado…
A política no terreno é diferente. E os tempos não são — definitivamente! — os tempos de Mário Soares, que subscreveu o estratagema do “arco da governação” inventado pelo CDS e PPD, para não ter de fazer o que hoje é óbvio que o maior partido de um dos lados, esquerda ou direita, faça: aceitar a maior proximidade prática dos partidos mais extremados do seu lado.
Essa artimanha consensual conseguiu bloquear o acesso do terceiro maior partido histórico do século passado, o PCP, ao poder executivo.
A democracia portuguesa precisou de 30 anos e de entrar no século XXI para finalmente o terceiro partido ter voto na governação. Sucedeu primeiro com o CDS em 2002, com Durão Barroso a levar Paulo Portas para o Governo. Uma coligação natural, já antes experimentada com a AD, mas pela primeira vez com o CDS no pódio como terceiro partido nacional. Em 2015 o terceiro partido foi o BE, mas nem o melhor resultado do terceiro partido este século (ver figura abaixo) lhe abriu a porta dos ministérios: ficou-se pelo apoio parlamentar negociado dia a dia na Assembleia da República.
Neste século XXI Mário Soares não poderia ter marginalizado o PCP. E António Costa teve a coragem de aceitar a nova realidade (ignorando os avisos das pessoas na sala dos preocupados).
… E o futuro
Também no Público, Jorge Almeida Fernandes aplicou a expressão “ruína do bipartidarismo” para explicar como em França a família Le Pen beneficiou da fraqueza dos partidos do centro para ascender. Em França a artimanha chamou-se “cordão sanitário” e funcionava na mesma a favor do partido socialista (de François Miterrand), mas ao contrário: a ideia era barrar o acesso à outra extrema, a direita.
Ora, essa fraqueza é real também em Portugal. A erosão do centro está bem explícita no quadro abaixo: os partidos do “arco da governação” perderam dez pontos percentuais em 20 anos.
Essa erosão explica em parte que, sejam quais forem as suas dúvidas, Luís Montenegro não terá a mínima hipótese senão fazer um governo com André Ventura a número dois. A outra parte é que os votos da direita não são mais conquistados pelo PSD na natural oscilação entre ciclos direita-esquerda, mas sim pelos dois partidos surgidos nos últimos anos, com destaque para o Chega, que poderá este ano superar o melhor score de sempre do terceiro partido se bater o recordista PRD, que teve 17% em 1985.
Qualquer outra solução que não seja integrar o CH nos ministérios debilitará ainda mais o PSD.
E não são só os números os conselheiros do apelo ao realismo dos observadores: são as posições programáticas e as declarações que comprometem os partidos. Ao contrário do que sucedeu com os terceiros partidos oriundos da esquerda, PCP e BE, que até 2015 nunca tinham manifestado a intenção de solucionar um Governo fosse como fosse, o CH reclama-o desde a primeira hora.
Assim, fora da minúscula sala dos preocupados não há nenhuma razão, objetiva ou subjetiva, para o PSD não formar um governo com o partido que lhe está mais próximo, no programa e no ideário, e que exige essa solução apoiado no, e legitimado pelo, voto dos cidadãos.
Mais: o CH dá jeito à AD. É uma excelente desculpa para fazer intervenções e levar à prática políticas que sempre sonhou mas nunca teve nem a coragem nem o pretexto.
(Perguntem a Passos Coelho se não teria adorado ter de controlar um Ventura em vez de um Portas.)
De um ponto de vista eleitoral, ou seja, dos eleitores — repito: DOS ELEITORES — qualquer solução que exclua Ventura do próximo Governo será incompreensível. O bloco dos partidos de direita só terá mais deputados na Assembleia do que o bloco dos partidos de esquerda porque os eleitores vão reforçar o CH.
A esmagadora maioria dos eleitores da AD (ou seja: do PSD e do CDS) também acha mais natural uma solução com o CH do que com “os socialistas”, como gostam de dizer.
A AD não cresce nada. A IL pouco cresce. Toda a diferença à direita é feita pelos eleitores do CH. Quem lhes vai negar Ventura no Governo?
Que preço pagarão o líder e o partido que neguem tal coisa?
Fica-nos muito bem termos receio do elefante fascizóide e que quer destruir a democracia e o estado de direito. Mas é estar longe das ruas. E as ruas querem 30 a 50 deputados do CH e a oportunidade deste ir para o Governo.
Fazer o quê? Sabem lá eles nem isso interessa nada. Ao descontentamento só interessa a mudança. Seja para onde for.
(Tenho muita pena. Estou, como muito provavelmente o leitor, e o Manuel Carvalho, e mais alguns, na sala dos preocupados.)
FALTAM 30 DIAS PARA AS LEGISLATIVAS 2024
Notícias
André Ventura afirmou que o Chega/Açores está disposto a formar governo com o PSD no arquipélago, podendo levar a uma coligação à direita na região autónoma • Lusa.
Luís Montenegro, líder do PSD e da coligação Aliança Democrática, manter-se-á nos debates televisivos, e não Nuno Melo, do CDS-PP, após negociações com os canais e depois de um mal-entendido inicial • Público.
ANÁLISE
🌍😡 Como a extrema-direita utiliza a indústria dos jogos para espalhar ódio
Extremistas infiltram-se na indústria de jogos, valorizada em mais de $100.000 milhões, para radicalizar jovens
Jogos criados e modificados para disseminar propaganda de ódio, com incursões também nas redes sociais
A indústria dos jogos é criticada por políticas laxistas que permitem a propagação de conteúdo extremista
A indústria de videojogos, que supera em valor as indústrias de cinema e música combinadas e está avaliada em mais de $100.000 milhões, enfrenta a infiltração da extrema-direita. Que procura manipular o setor para disseminar ódio e radicalizar a juventude entre os seus 3.000 milhões de utilizadores. A Polícia Federal australiana emitiu um alerta em dezembro de 2023, reforçando a preocupação com a crescente presença de extremismo de direita nos jogos, um problema crescente para a segurança online, especialmente para adolescentes.
Extremistas estão ativamente a criar e modificar jogos, além de se infiltrarem em plataformas de jogos mainstream, para divulgar ideologias de ódio. Utilizam chats de jogos para “postar” propaganda, assediar jogadores e hiperligar material extremista de outras plataformas, com esforços que também alcançam plataformas de social media mainstream, como o YouTube, conhecido por hospedar conteúdo extremista.
A responsabilidade de impor e manter padrões de comunidade que garantam a segurança dos usuários recai sobre a indústria de jogos. Que tem sido criticada por falhar nesse aspeto, permitindo que extremistas explorem políticas de moderação frouxas e ignorando conteúdo prejudicial. Esta lacuna na auto-regulação facilita a propagação de crenças e comportamentos de ódio.
Extremistas também utilizam plataformas adjacentes aos jogos para organizar e difundir suas ideologias perigosas. Evidências mostram que terroristas, como o autor dos ataques na Noruega em 2011, usaram jogos como parte do “treino” para os ataques. Plataformas como Discord também foram usadas para organizar eventos extremistas violentos, como os motins de Charlottesville em 2017.
Desde 2021, redes transnacionais de extremistas e neonazistas, como a “Patriot Youth” e a “Robloxwaffen Division”, têm-se organizado na plataforma de jogos online Roblox. A Roblox é particularmente suscetível devido à sua capacidade de deixar os utilizadores criarem as suas próprias “experiências”, atingindo mais de 70 milhões de utilizadores ativos diariamente no terceiro trimestre de 2023. A plataforma, com uma demografia jovem, com 42% dos usuários abaixo dos 13 anos, torna-se um terreno fértil para extremistas predadores.
Fonte: Global Project Against Hate and Extremism (GPAHE)
CURTAS
Janeiro de 2024 registou as temperaturas globais mais elevadas já medidas, 1,66°C acima dos níveis pré-industriais, com uma sequência recorde de oito meses aquecidos e um possível e constante ultrapassar do limiar de 1,5°C do Acordo de Paris na próxima década • ABC.
O Presidente russo, Vladimir Putin, sugeriu a possibilidade de libertar Evan Gershkovich, um jornalista americano preso em Moscovo, o que poderia ocorrer através de uma troca por um agente russo detido na Alemanha • Politico.
A Grécia caminha para se tornar o primeiro país da ortodoxia cristã a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, numa posição apoiada pelo primeiro-ministro e contrastante com outras nações ortodoxas como a Rússia • Ekathimerini.
Uma delegação da Comissão de Veneza do Conselho da Europa visitou Espanha para discutir a lei de amnistia que perdoaria separatistas catalães, promessa do Primeiro-ministro Pedro Sánchez em troca de votos parlamentares • Euractiv.
Moçambique planeia aumentar a sua capacidade hidroeléctrica em 14.000 megawatts entre 2030 e 2040, no âmbito de uma estratégia focada no potencial de energia verde para impulsionar a economia do país • Bloomberg.
Após as eleições no Paquistão, há um impasse político sem resultados oficiais, com o ex-primeiro-ministro Nawaz Sharif a declarar vitória, apesar de não obter maioria suficiente • RTP.
O ministro da Defesa dinamarquês, Troels Lund Poulsen, alertou para a real possibilidade de ataques russos a países da NATO, apelando ao reforço das defesas aéreas destas nações • Lusa.
O ministro da Cultura de Espanha, Ernest Urtasun, anunciou medidas para combater o machismo no setor cultural, incluindo a revisão da narrativa de museus e a criação de um serviço específico • Público.
O ministro das Finanças, Fernando Medina, prevê que a dívida pública se poderá situar em 95% no final do ano, desde que o próximo governo mantenha o rigor fiscal atual • RTP.
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Um filme
Vidas Passadas. Realização: Celine Song Actor(es): Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro, Moon Seung-ah. “A primeira obra de Celine Song é um filme luminoso, comovente, que se entranha para não mais nos largar.” Jorge Mourinha
Uma exposição
Mar Farpado. De Miguel Palma, Museu Marítimo de Ílhavo, Ílhavo, Av. Dr. Rocha Madaíl, 193. De 3ª a sábado, das 10h às 13h e das 14h às 18h, domingos e feriados, das 14h às 18h, até 18 de Fevereiro 2024. “As máquinas celibatárias de Miguel Palma em Ílhavo. A exposição é constituída por várias peças mecânicas, animadas por motores, por um vídeo que documenta uma acção de rua em Lisboa, e ainda por uma instalação de objectos do MMI que, combinados com outros do arquivo pessoal do artista, traduzem um entendimento muito pessoal do próprio conceito de museu.” Luísa Soares de Oliveira
Um livro
Da Próxima Vez, o Fogo. Autoria: James Baldwin Tradução de Valério Romão Editora: Alfaguara, 2023. “A América é uma casa em chamas: Da Próxima Vez, o Fogo, de James Baldwin, chega a Portugal. Figura central do Movimento dos Direitos Civis, James Baldwin distanciava-se da visão de Malcolm X e da Nação do Islão fundada nos anos 1930, que demonizava o homem branco, queria tomar o seu poder e impor a fé islâmica. Ou seja, trocar a supremacia branca pela negra. James Baldwin contrapõe: “A glorificação de uma raça em detrimento de outra – ou outras – tem sido e será sempre uma receita para o morticínio.” Da mesma forma, rejeitava a proposta de um país para brancos e outro para negros. A questão, dizia, não era de cor. “A cor não é uma realidade humana ou pessoal; é uma realidade política.” Isabel Lucas
RELEMBRANDO
Não lemos todas as newsletters todos os dias, naturalmente… Podem ter-lhe escapado estes assuntos:
[1.27] Grande passo atrás para a Europa: Comissão retira proposta de redução de pesticidas. Ursula von der Leyen fez a UE recuar anos numa proposta importante. Está a ser criticada pela cedência aos protestos em ano eleitoral.
[1.26] Açores: Chega ocupa lugar do CDS como 3º partido, maioria absoluta escapa a PSD. O "centrão" continua a dominar a política açoreana. O CH cresceu abaixo das projeções. E Bolieiro poderá arriscar um governo minoritário.
[1.22] Extrema-direita deixa Alemanha em pé de guerra — precisamente onde queria. Não há nada que hoje se faça no espaço público europeu que não resulte a favor do avanço da extrema-direita. Qualquer coisa é pretexto para o que parece ser o seu inexorável avanço.
Bem, em primeiro lugar, é bastante duvidoso que o voto no chega seja um voto numa possibilidade de governar e não sobretudo protesto e ressentimento. Em segundo lugar, se fosse sempre feito diretamente tudo o que os eleitores desejam, ainda hoje a homossexualidade era crime, o aborto era crime, a pena de morte era comum e a tortura aceitável. E, por fim, o erro de base em quase todas as análises ou premissas é considerar o chega um partido como os outros (ainda que legalmente o seja). A direita podia resolver o problema, ou pelo menos minimizá-lo, se tivesse, ou quisesse realmente, criar um cordão sanitário (tipo CDU vs afd). Não o fez, tem sido bamba, fez acordo nos Açores, tem discutido o chega dando-lhe laivos mínimos de credibilidade (aqui a esquerda e o jornalismo/comentário também são culpados). Portanto, os eleitores votam por ressentimento, descrença e alguns porque são fascistas, mas também porque sabem que não é de facto um partido para o governo ou sequer confiável mas parece que o psd acha que é, ou que pode "mudá-lo" (onde é que já vimos isto?).