[E.6] Direita tem a hegemonia dos colunistas da imprensa portuguesa
A análise aos articulistas da imprensa semanal que escrevem sobre política desfez o equilíbrio que víramos na imprensa diária. No global, a direita tem mais um que centro e esquerda somados
Neste 6º Especial VLV exclusivo para os apoiantes, publico a segunda parte do estudo sobre quem são os colunistas da imprensa generalista que têm escrito regularmente sobre política e qual é a sua posição em termos do tradicional espectro esquerda-direita.
Se na primeira parte — Direita em maioria ligeira nos colunistas de imprensa diária — o equilíbrio era a nota dominante, com a direita a ter um número ligeiramente superior à esquerda mas ficando abaixo da soma da esquerda e do centro, a análise aos 64 colunistas que identifiquei na imprensa semanal não apenas acaba com esse equilíbrio, como se torna hegemónica.
Hegemónica em termos numéricos mas também com sinal reforçado em termos ideológicos, tal como é capturado pela divisão de cada bloco em duas metades, uma suave, outra afirmativa: no quadro final, na linha “dura” há 2,5 vezes mais articulistas no extremo da direita que no extremo da esquerda.
Como se dividem pelos cinco vieses possíveis, que órgãos são responsáveis pela hegemonia final da direita, e quem são os colunistas e qual a sua pontuação, eis o essencial deste Especial.
E como encaixar os sete repetentes que têm duas colunas políticas, uma em diário e outra em semanário ou revista? E não menos interessante: nesses casos a avaliação é idêntica nas duas colunas que escrevem? (Spoiler: não.)
Metodologia (resumida)
Este estudo de VamoLáVer ignora as preferências conhecidas e as pertenças declaradas dos articulistas, avaliando um conjunto que se pretende significativo dos textos mais recentes, e usando para a avaliação de conteúdo uma “grelha” desenvolvida ao longo de anos especificamente para estimar o viés político percebido no conteúdo dos textos publicados pelos meios online.
Esta avaliação foi levada a cabo sem interferência humana. Foi usado um large language model comercial, o Claude 3.5 da Anthropic, ou seja, recorri a uma inteligência artificial, não a uma inteligência humana. Motivos? Dois:
viabilizar o trabalho de análise de um total de mais de 2.500 artigos dos 157 autores: sem os benefícios de rapidez da IA, a tarefa era impossível de realizar
reduzir a contaminação da cosmovisão: é inerente a todas as inteligências, a artificial não escapa à regra, mas tem um peso muito superior na humana
A metodologia completa e o processo técnico estão descritos na primeira parte.
Índice do conteúdo aberto
Esquerdas quase residuais na imprensa semanal: a esquerda tem 9% dos 64 colunistas de semanários e revistas, face a 9% da direita. E o centro direita é esmagador, com praticamente metade do total.
Miguel Sousa Tavares no centro esquerda? Sim, para minha surpresa — e de muita gente. O que disse o modelo e a minha explicação
Índice do conteúdo exclusivo para apoiantes do VamoLáVer
Direita tem a hegemonia dos colunistas da imprensa portuguesa: como ficou o quadro completo, com a entrada dos articulistas semanais.
Quadro completo da distribuição de viés: as percentagens de todos os dez meios, os seis diários e os quatro semanários, num único gráfico colorido de compreensão imediata
Lista dos colunistas divididos por órgão de comunicação: Expresso, Sol, Sábado e Visão, com o link para a página onde se podem consultar de forma interativa todos os colunistas e as suas avaliações completas
O caso do proprietário da Visão: o único autor de centro direita numa publicação de centro esquerda
As diferenças entre os sete colunistas que escrevem em duas publicações: há um que muda de “campo”
Interpretações e conclusões finais: este estudo descreve as tendências atuais e não as passadas. E resultou porque criou um quadro inequívoco do balanceamento ideológico dos colunistas e da opinião preferencial dos jornais envolvidos, possibilitando a substituição do quadro mais pobre do achismo e da verdade de cada câmara de eco.
Vamos então à leitura da segunda parte do estudo.
Esquerdas quase residuais na imprensa semanal
O corpora para a análise foi, desta vez, elaborado a partir dos sites dos semanários Expresso e Sol e das revistas Sábado e Visão. Foram identificados 64 colunistas e recolhidos os textos completos dos artigos publicados recentemente, com a preocupação de obter pelo menos 20 textos para dar consistência à análise de conteúdo.
Como vemos no quadro abaixo, direita e centro direita têm uma confortável maioria absoluta, com 57% dos colunistas. Esquerda e centro esquerda somadas mal perfazem um terço do total.
Esta distribuição é muito diferente da notada na imprensa diária. Comparando os dados de ambas:
a esquerda perde 1%
o centro esquerda perde 8%
o centro perde 1%
o centro direita ganha 11% (atenção aos arredondamentos das percentagens)
a direita mantém a sua percentagem
O gráfico seguinte mostra a “mancha” da direita na imprensa analisada. Note-se que somente um dos quatro meios, o Expresso, dá espaço a colunistas de esquerda, ambos deputados ao Parlamento, um do Bloco de Esquerda, outro do PS (mais abaixo apresento as listas por órgão de comunicação).
O Expresso é, de longe, o meio que mais espaço dá à opinião: identifiquei 35 colunistas regulares, que se distribuem pelos veículos papel e digital. Muito longe dos 21 do Público, o mais opinativo dos diários.
O Expresso é também o órgão com a maior percentagem e o maior número de políticos como articulistas — não apenas antigos ministros como Mira Amaral e Ferreira Leite, mas deputados e eurodeputados no ativo, como Rui Tavares e Sebastião Bugalho.
Miguel Sousa Tavares é de esquerda?
Nas conclusões da primeira parte escrevi isto: “quando a resposta do modelo sobre Miguel Sousa Tavares (que veremos na segunda parte do estudo) o situou no centro-esquerda, foi uma surpresa: no meu espírito tinha há muito tempo encaixado MST na gaveta do centro direita. Comecei a prestar mais atenção, tentando compreender o modelo. As conclusões seguintes decorrem da aprendizagem que operei ao longo das últimas semanas.”
Como eu, muita gente. Mas o modelo não sofre dos meus preconceitos. Melhor dizendo: o modelo não tem emoções. A desilusão, por exemplo, que sentimos porque alguém que prezamos tem, entre dezenas com que concordamos, duas ou três posições de que discordamos vivamente. É o tipo de interferência a que uma inteligência natural, como a humana, está sujeita, mas não uma inteligência artificial.
O que o modelo fez foi analisar os textos à luz — e apenas à luz — de uma grelha que determina que certas ideias são etiquetadas como de esquerda, outras de centro, outras de direita, e faz uma contagem estatística (estou a simplificar) das ocorrências num conjunto de frases. Ou seja: o modelo não tem um julgamento prévio nem nenhuma pista sobre o que defendeu cada colunista no passado, ou fora do conjunto de artigos que lhe foi fornecido.
E assim, eis como o modelo classificou e justificou a análise às 15.343 palavras em 78 parágrafos de Miguel Sousa Tavares que lhe forneci:
Aqui está um resumo da análise do viés político do autor Miguel Sousa Tavares, baseado nos textos fornecidos:
Miguel Sousa Tavares apresenta um viés de centro-esquerda, com uma classificação estimada de -1.5 na escala de -6 a +6.
Principais características observadas:
- Crítica frequente a políticos e partidos de direita, especialmente os mais conservadores ou populistas.
- Defesa de políticas sociais e do Estado Social.
- Preocupação com desigualdades e injustiças sociais.
- Críticas à austeridade e cortes em serviços públicos.
- Posições progressistas em temas sociais.
- Ceticismo em relação ao neoliberalismo e desregulação econômica excessiva.
- Defesa de uma imprensa livre e crítica.
- Preocupação com questões ambientais.
- Críticas ao populismo e extremismo político.
- Defesa de soluções diplomáticas para conflitos internacionais.
Ao mesmo tempo, o autor não se alinha totalmente com a esquerda mais radical, mantendo algumas posições mais moderadas e pragmáticas. Sua visão tende a ser social-democrata, defendendo um equilíbrio entre políticas sociais e uma economia de mercado regulada.
Por estas razões, a classificação de -1.5 (Lean Left) parece adequada para capturar o viés geral do autor, que se inclina para a centro-esquerda sem chegar a posições mais extremas.
Direita tem a hegemonia dos colunistas da imprensa portuguesa
Depois do quadro acima, é só fazer as contas com o quadro da primeira parte, dedicada aos diários e online. Depois dos ajustes, acabamos com a distribuição genérica patente no imagem abaixo: quando olhamos para toda a imprensa, a direita tem a maioria absoluta, com mais um colunista que a soma do centro com a esquerda.
E se decompusermos um pouco mais os lados, temos seis colunistas de esquerda contra 15 de direita. Ou seja, na linha “dura” há 2,5 vezes mais articulistas do lado direito que do lado esquerdo.
Na linha suave, a direita moderada tem mais sete representantes que a esquerda moderada.
O maior contributo para desfazer o equilíbrio visto anteriormente nos diários vem do grande contingente do Expresso, que tem 18 de centro direita num total de 35 colunistas, e do batalhão do Sol, que apresenta seis da direita “dura” em 16.
Percentagens no quadro seguinte:
Quadro completo da distribuição de viés
Abaixo deixo o quadro completo da distribuição de viés.
As listas dos colunistas por órgão de comunicação
Seguem-se abaixo as classificações e o rating dos 64 colunistas da imprensa semanal, usando sempre o mesmo código de cores, do azul mais escuro à esquerda até ao vermelho mais vivo à direita. Aparecem agrupadas nos meios de comunicação e, por razões de legibilidade, optei por “esconder” as justificações do modelo de IA para cada avaliação (acima mostrei um exemplo de uma delas).
Mas o conteúdo completo está disponível em linha aqui, numa página interativa para facilitar a consulta. Essa página inclui todos os colunistas dos dez órgãos analisados — os seis diários e os quatro semanários. Verifique os seus colunistas preferidos e a justificação dada pelo Large Language Model Claude 3.5.
Expresso
Sol
Sábado
Visão
O caso (único) do proprietário da Visão
Há dois casos em que temos os donos a emitir opinião nos seus órgãos de comunicação. Mário Ramires está identificado como o proprietário dos jornais Sol e i, acumula com um cargo editorial, o de diretor das duas publicações. Enquanto Luís Delgado está identificado como o proprietário da Visão mas não tem nenhuma responsabilidade editorial: é um comentador como os outros.
Mas a principal diferença, no âmbito deste estudo, é outra: enquanto Ramires está completamente alinhado com o viés predominante de centro-direita das suas publicações, Delgado diverge. É o único colunista político de centro-direita numa publicação que conta seis opinion-makers de centro-esquerda.
As diferenças entre os sete colunistas que escrevem em dois sítios
Contabilizei sete colunistas que escrevem em dois meios, um diário e outro semanal. A lista é a seguinte, com os nomes, as publicações e, entre parêntesis, o rating em cada uma:
Eduardo Baptista Gouveia escreve no Sol (1,5) e Jornal i (2)
Eduardo Dâmaso publica na Sábado (0), que dirige, e como colunista no Correio da Manhã (1.5)
João Pereira Coutinho escreve na Sábado (2.5) e no Correio da Manhã (1.5)
José Pacheco Pereira tem crónicas na Sábado (-1.5) e no Público (-2), com a particularidade única de serem órgãos de grupos diferentes
Mário Ramires assina nas duas publicações que dirige, Sol (2.5) e Jornal i (1.5)
Nuno Tiago Pinto publica como diretor na Sábado (0) e como colunista no Correio da Manhã (0)
Vítor Rainho escreve no Sol (1.5) e no Jornal i (1.5)
Resumindo: em dois dos sete casos não há mudança de rating, o teor dos artigos é basicamente o mesmo, noutros quatro há diferenças mínimas e num único caso há uma mudança significativa, do centro para o centro direita. Associo-a ao facto de Eduardo Dâmaso ter na Sábado um cargo de direção, o que comporta um compromisso editorial que eventualmente o faz convergir para o centro, enquanto no Correio da Manhã tem maior latitude de opinião.
Interpretações e conclusões finais
Este trabalho foi surpreendente. E cansativo. E muito compensador: desde logo porque o retorno dos leitores, assinantes e apoiantes de VamoLáVer foi — é uma palavra gasta pela moda mas cá vai — fantástico, com conversas muito interessantes com alguns deles e ecos de repercussão vindos de alguns dos meios e dos colunistas analisados, mas também porque aprendi muito sobre os processos de formação de opinião.
Deixo aqui algumas das interpretações que faço dos resultados e das surpresas que nos proporcionaram.
1.
O corpora é tudo, é mais que o modelo. Um dos critérios para a seleção de colunistas acabou por vir a ter um peso inesperado: o número de artigos. Experiências feitas na fase de testes dos meus scripts de interação com o modelo Claude, da Anthropic, demonstraram preliminarmente que analisar um artigo e analisar um grupo de artigos dão resultados diferentes.
Mais tarde, já esta semana, e quando preparava esta segunda parte, tive a oportunidade de uma prova de fogo: um dos colunistas avaliados pediu-me para submeter um conjunto mais alargado de artigos que datam sobretudo 2015 e do início dos governos do PS apoiados no Parlamento por partidos do centro esquerda e esquerda; foram publicados em pelo menos três órgãos diferentes. 72.000 palavras no total, retirado do seu livro de crónicas. O objetivo era ver se o modelo confirmava o viés observado em 22 dos seus últimos textos (com 16.000 palavras), nos quais o colunista obteve -1.5, o que é centro esquerda em termos de etiquetas para a compreensão humana.
O resultado foi diferente, contudo. O modelo indicou um rating entre 1 e 2 — ou seja, no centro direita, para o segundo conjunto de artigos.
A explicação é simples, mesmo que seja difícil de aceitar. Como referi acima acerca de Miguel Sousa Tavares, o modelo não está a avaliar a pessoa numa dimensão diacrónica, como os humanos inevitavelmente fazem, está a avaliar a pessoa num determinado contexto, ou num determinado momento. E o que me importa sublinhar: esse momento é o presente.
Recorro a outros dois exemplos além de MST. Um é David Dinis. O atual diretor adjunto do Expresso deu centro na avaliação de 30 dos seus artigos no presente: de outubro de 2023 até à semana passada. Se fornecêssemos um grupo de textos de quando era diretor do Observador, por alturas de 2014 o resultado seria diferente. E se recuássemos ao tempo em que foi assessor de imprensa de Durão Barroso, no XV Governo Constitucional, teríamos ainda outro resultado.
A verdade é que as pessoas mudam. Uma vezes mudam mesmo as convicções, levadas a isso pelas circunstâncias ou pela simples acumulação de conhecimento. Outras mudam porque a realidade à sua volta muda, provocando reações diferentes.
O outro exemplo é José Pacheco Pereira, que o modelo avaliou com -2 no Público (14.800 palavras em 16 artigos todos datados deste ano) e com -1.5 na Sábado (28.000 palavras em 22 artigos de um período de tempo semelhante). A diferença de rating é de somenos e explica-se pela diferença de cunho político com que alimenta as duas publicações. O que quero deixar claro é que o atual colunista de centro esquerda é diferente do Pacheco Pereira do tempo em que foi vice-presidente do Parlamento Europeu eleito pelo PSD, e ainda mais diferente do ideólogo do cavaquismo nos anos 1990.
Sintetizando, o modelo avalia as tendências atuais, não as passadas.
2.
O ponto de partida para este trabalho era um desafio: é possível catalogar os colunistas da imprensa portuguesa em termos de esquerda-direita de uma forma tão perto de científica quanto possível, de forma a estabelecer um quadro inequívoco do balanceamento partidário desse corpo de opinion-makers?
A resposta é: sim, é possível. Está feito. É uma primeira versão e sem dúvida que surgirão oportunidades de o fazer de forma mais perfeita — mas creio que estabelece um quadro muito diferente da mera opinião de cada uma das facções, que garantem o contrário uma outra às respetivas câmaras de eco.
Sem a excluir, pois cada um continuará a ter o direito a decidir em função da sua opinião sobre cada colunista e sobre o viés maioritário de cada jornal, site ou revista, estabelece um patamar novo que permite entender melhor as diferenças e as proximidades.
3.
Porque resultou? Em primeiro lugar, porque a tecnologia dos large language models tem um poder incrível de produção. Sem o Claude, eu levaria meses para ler os mais de 2.500 artigos analisados. Não é só a rapidez, é também o foco: sem ser absolutamente perfeita, uma inteligência digital consegue uma concentração nos objetivos que deixa estatelada a inteligência humana nos primeiros dois metros da corrida. As oscilações de interpretação são observáveis nestas duas inteligências, mas a frequência humana é muito maior.
Em segundo lugar, porque isolei o modelo dos meus próprios conceitos. Não deixei que transpirasse, em nenhum momento do processo, o meu bias de esquerda (voto entre o PS e o Livre). O prompt para interrogar o Claude é um prompt rigorosamente técnico.
Em terceiro lugar, porque usei uma grelha de avaliação que é alheia, até, à política portuguesa. É a usada nos serviços comerciais que estudam o comportamento e as inclinações político-partidárias dos meios de comunicação. Essa grelha foi introduzida no prompt, que exige ao modelo que se cinja a ela. Os resultados foram francamente espetaculares — recomendo uns minutos a “brincar” na página interativa com todos os dados do estudo e veja as justificações dadas pelo modelo para diferentes autores.
O futuro?
É cedo para pensar nisso. Este estudo ajudou a VamoLáVer a crescer em assinantes e em apoiantes — e isso aumenta as responsabilidades deste projeto de cidadania informada. Também trouxe uma maior visibilidade pública.
Uma coisa é certa: na exata medida em que estou apostado em melhorar a dieta informativa dos cidadãos interessados, nomeadamente apresentando-lhes — devidamente destituídos da gordura do link-bait e outros processos de engodo que enfermam a comunicação social tradicional e em rede — as alternativas que lhes estão a escapar fora das “bolhas”, é de esperar que introduza na nossa rotina, na newsletter e noutros conteúdos, uma visão mais alargada e honesta do material informativo que nos chega todos os dias.
Muito bom! Tempo para fazer o mesmo aos comentadores (e outros) das várias TV's informativas.
Muito obrigada!
Luísa