[OP.2] Choque, pavor, esperança e normalidade: os dias seguintes à eleição de Trump
Dos EUA à Europa, colunistas dos diversos quadrantes políticos explicam o regresso de Donald Trump à Casa Branca e o que podem esperar americanos, europeus e o resto do mundo.
Esta segunda edição OP é centrada num único assunto. Regressarei no próximo número ao formato dos temas semanais. O motivo é óbvio.
A seguir a um nota editorial, temos um apanhado de colunistas de várias geografias, com destaque para os Estados Unidos da América e para Portugal, mas com outras visões europeias. São de todos os quadrantes partidários. Decidi deixar a manta de retalhos em vez de fazer a habitual sistematização dos argumentos por achar que torna a leitura mais reflexiva e interessante (e demorada: na totalidade, ultrapassa os 30 minutos). E dadas as novidades, é ainda cedo para hierarquizar, sequer, os diversos pontos de análise.
Entre os colunistas portugueses respiguei citações de Rui Tavares, Ricardo Costa, Viriato Soromenho-Marques, Jaime Nogueira Pinto, José Pacheco Pereira, António Barreto, Pedro Ivo Carvalho, Luís Marques, Pedro Marques Lopes, Miguel Sousa Tavares, Maria de Lurdes Rodrigues, Teresa de Sousa, João Miguel Tavares, Jorge Fernandes, Henrique Raposo e Manuel Carvalho. Temos também editorialistas do El País e de The Guardian.
[ Antes de mergulhar na leitura, recordo que alguns programas de e-mail, como o Gmail, cortam as mensagens longas a certo ponto. Se isso suceder, terá por altura do corte o link para ler todo o artigo na web. ]
Nota do editor
Como é que Donald Trump superou vulnerabilidades políticas aparentemente fatais — quatro acusações criminais, três processos judiciais dispendiosos, condenação por 34 crimes graves, intermináveis divagações imprudentes nos seus discursos — e transformou algumas delas em vantagens?
Como é que 72 milhões dos 141 milhões de eleitores votaram não apenas inequivocamente no regresso de Trump à presidência do seu país, como em duas maiorias republicanas nas duas câmaras, Senado e Representantes (esta ainda por confirmar)?
São todos fascistas? Idiotas? Suscetíveis à doutrinação dos influenciadores?
Foi a economia? O lunatismo dos eleitores rurais? O encanto do Homem Laranja? As redes sociais e as narrativas de ódio e falsidades? Deus? Ou Musk? O ocaso dos jornalistas e o avanço dos podcasts e newsletters? A rede social X? Os algoritmos? O desencanto com as propostas dos Democratas? A polarização? Os mexicanos?
Vem aí o fim da democracia? (Respondo já: é complicado, mas numa palavra, não. Pelo menos, não nos Estados Unidos. O “não” esbate-se quando falamos da União Europeia, ou melhor, de alguns dos seus Estados-membros.)
Nos dias seguintes ao cataclismo eleitoral que redesenhará a política americana, há muitas respostas, ainda desordenadas, que terão de ser avaliadas e mastigadas por cientistas e pessoas no terreno.
Decidi recolher um leque alargado de opiniões de colunistas, divididos em dois blocos: os que publicam dentro dos meios de comunicação tradicionais, e os que publicam fora. Dentro dos meios tradicionais, formei duas colunas: portugueses e não portugueses. Nas minhas primeiras leituras percebi dois divisores:
a perspetiva dos americanos é diferente da perspetiva dos europeus — e mais importante do que a perspetiva: o grau de medo é muito distinto
os colunistas do sistema mediático tradicional parecem mais impressionados pelo Apocalipse Que Aí Vem, o fim da democracia e etc do que os colunistas fora dele
Em rigor, essas são fronteiras ténues. E outras podem emergir. Os textos desta meia centena autores que selecionei constituam uma aproximação útil à manta de retalhos da opinião e análise. Da sua leitura extraí alguns pontos.
Não é o fim da democracia
Arrefeci os meus próprios medos do Apocalipse Laranja. Trump grita e gesticula um discurso caótico e impressionante porque essa é a melhor forma de chamar a atenção num espaço comunicacional que mudou radicalmente nos últimos 15 anos.
Já não vivemos no tempo do jornal da manhã, do noticiário radiofónico no carro a caminho do emprego, e do noticiário televisivo em dois canais à hora de jantar. Há dezenas de canais em todos os horários e centenas de jornais e milhares de emissores de opinião, todos a disputar a nossa atenção com os jogos, os sites de apostas, o scroll no Facebook e no X, os videos engraçados do TikTok… É preciso gesticular e gesticular muito para que o eleitor repare e ganhe a atenção mínima para perceber, em meia dúzia de mensagens curtas e repetidas à exaustão com a linguagem mais violenta possível, quais as propostas. E Trump tinha propostas: é problema dos seus adversários políticos, e dos cidadãos que não gostam do seu corte de cabelo, se preferiram não as escutar porque ele “é um mentiroso”. É. Mas não mentiu sobre o que se propõe fazer.
Sintetizando: gesticulação e ultraje são a forma, culpa minha, culpa nossa, se por causa da forma não vimos o conteúdo. E o conteúdo de Trump é mais comezinho e normal do que apocalíptico. Continuo a rejeitá-lo — mas o meu medo baixou. A democracia irá sofrer por via da força dos ultra-conservadores americanos que dão cobertura a Trump e o estado de direito sofrerá, mas existem na sociedade americana outras forças que se oporão e resistirão. É regenerável: a democracia americana deverá manter-se, com eleições regulares em 2026 e 2028.
O segundo mandato
As principais preocupações com o segundo mandato incluem a natureza vingativa, a idade avançada e tendência para se rodear de aduladores que reforçam os seus piores instintos.
As suas propostas de políticas económicas, como tarifas generalizadas, e planos de deportação em massa, podem gerar instabilidade social e económica significativa.
A nível dos estados, as políticas republicanas extremistas, especialmente restrições ao aborto e censura de livros, representam ameaças mais imediatas às liberdades individuais do que as propostas federais de Trump.
Mas existem elementos positivos a considerar, como este: Trump herdará uma economia forte, e o seu histórico anterior demonstra capacidade de gestão económica eficaz, com crescimento salarial recorde e baixo desemprego.
Impacto mundial
Eu entendo que as previsões sobre o fim da guerra na Ucrânia são largamente exageradas. O que Trump quer é retirar os EUA da equação, que é como quem diz, cortar no financiamento. Não é no estado generalizado de aumento da pegada militar no mundo que uma segunda Administração Trump fará mossa: é na economia e na disseminação da doença da autocracia pelas democracias onde quer que elas ainda existam.
O fim da globalização. Sendo realista: o fim da globalização já estava em curso, os últimos 10 anos mostram-no com eloquência. O combate global contra a pandemia Covid-19 foi o último ato, a despedida triunfal, do arremedo de “Uma Única Civilização Global” que tivemos durante poucas décadas. A globalização (falo desta, não das anteriores) deu-se basicamente porque os custos das produções americana e europeia eram baixos em países remotos, sobretudo na Ásia. Ora, isso acabou. Principalmente devido à robotização e à transferência em massa da produtividade do fator humano para o fator tecnológico. Em segundo lugar, porque a competitividade salarial diminuiu.
Trump sempre foi um proteccionista, não é de agora. Em parte essa característica ajudou à sua eleição numa altura em que o repatriamento da produção se tornou significativo. Vai acelerar o movimento isolacionista que afetará profundamente a economia mundial, e politicamente tem ainda muitas ondas de choque para produzir na Europa, em concreto na União Europeia.
O problema da esquerda
O resultado da terça-feira lançou o mundo, literalmente, numa discussão sobre a derrota do Partido Democrata e da esquerda em geral. Não alinho no grupo que atribui a culpa à candidata Kamala Harris. A campanha dela foi bastante boa, até. O problema dos Democratas (já lá vou à esquerda em geral) chama-se Joe Biden. Biden nunca devia ter sido o concorrente. Recordo que Kamala Harris surge nas corrida em 21 de julho — a pouco mais de três meses das eleições, ou menos de dois meses se considerarmos que o voto por correspondência abriu em alguns estados logo em setembro. Recordo que Harris surgiu para evitar a derrota copiosa de Biden às mãos de Trump, que se adivinhava na altura.
Com este tipo de limitação de tempo, competindo contra uma campanha há dois anos no terreno, Kamala Harris estava condenada a perder. Escamotear este detalhe agora não faz sentido.
Dito isto, vamos à esquerda. O argumento do elitismo tem algum interesse na medida em que as lideranças dos partidos das esquerdas se deixaram encapsular, tanto por responsabilidade própria, debandando do terreno, como por responsabilidade alheia, sendo incapazes de alterar as dinâmicas de comunicação que subtilmente as foram encostando aos guetos das minorias.
Mas é um argumento frouxo e rapidamente desmontável. Há partidos, como em Portugal o PCP, que não foram nas correntes das minorias. E não saíram do terreno, nunca saíram dos terrenos dos descontentamentos. E contudo esses partidos comungam do destino geral das esquerdas.
Assim, é necessário ir bem mais longe, mais para os lados e menos para a profundidade desse lago argumentativo.
Creio que o principal drama das esquerdas é não terem uma narrativa para opor. Não terem construído um quadro de respostas, quer aos novos problemas, quer às novas realidades. Usando ainda o exemplo do PCP: o partido não acompanhou os novos trabalhadores, por assim dizer, não re-hierarquizou corretamente os novos problemas, como a questão ambiental, e sobretudo não modernizou, nem substituiu, a sua narrativa. Basta ouvir “os grandes grupos económicos” para uma pessoa desligar. Não porque essa realidade tenha mudado. Pelo contrário, o drama é precisamente esse; as esquerdas tiveram oportunidades para mudar as coisas e não as mudaram o suficiente para que os motores económicos e sociais passassem a gastar outros combustíveis.
A fechar: muito mais do que Harris ter perdido, Trump venceu por mérito próprio e da campanha dos Republicanos — sim, desta vez, e ao contrário das duas anteriores campanhas de Trump, o partido ajudou muito significativamente. E vai cobrar: não acredito nada que a próxima Administração Trump seja parecida com a primeira, penso que ele terá muito menos poder pessoal.
E isso é problemático, desde o papel de Elon Musk — a América e os embasbacados de todo o mundo chamam-lhe carinhosamente apenas Elon, o que diz tudo — ao guião da Heritage Foundation, o Projeto 2025, para remodelar o governo dos Estados Unidos e consolidar o poder executivo.
O caminho da autocracia está a ser trilhado. Com Trump a América vai acelerar o passo e os partidos europeus da extrema direita e da direita conservadora vão empurrar o centro direita para esse trilho.
Colunistas fora dos mainstream media
Isaac Saul: Pensemos em Bernie Sanders atualmente. Sanders fez o possível para alertar o partido sobre esta vaga de sentimento populista que se aproximava. Na minha opinião, apresentava a melhor mensagem possível para contrariar a crescente vaga de populismo conservador em 2016, mas foi ridicularizado e marginalizado pelo establishment — e nos oito anos que se seguiram, Sanders tem tentado desesperadamente despertar os Democratas para a realidade de que o Trumpismo veio para ficar, e que os Democratas não têm uma visão alternativa convincente. Sanders estava e está correto, e enquanto os Democratas enfrentam dificuldades em eleições por todo o país, venceu ontem com uma margem de 31 pontos. Considero que uma leitura simples dos resultados de ontem não se prende tanto com quaisquer falhas particulares dos Democratas, mas sim com o facto de os eleitores apreciarem muito aquilo que Trump oferece. Os Democratas fariam bem em adotar uma linha política à Bernie Sanders para o futuro do partido.
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