[E.14] Montenegro: o político que escolheu as perceções erradas
Herdou o melhor Portugal que alguma vez foi deixado a um Governo; a explicar um país num ciclo de prosperidade, preferiu as sombras na parede da caverna: os imigrantes e as avenças.
Este Especial VamoLáVer é escrito propositadamente antes do resultado da votação da moção de confiança. Isto porque tanto a cronologia dos acontecimentos deste mês surreal como as reações dos envolvidos mostram como se vem alargando o fosso entre a realidade em que as sociedades se movem — da economia à guerra passando pelo bem estar — e a bolha suspensa translúcida em que vivem e tomam decisões os políticos, governantes ou oposicionistas. E é esse fosso o objetivo deste Exclusivo.
Mas que fosso é esse?
Não tem ainda um nome, ou tem vários, conforme a disciplina dos estudiosos que sobre ele se vão debruçando. Mais à frente explicar-se-á melhor o que está em causa, mas para já fiquemo-nos com a figura central da comédia da moção de confiança: Luís Montenegro.
O professor de Economia da Universidade do Minho, Luís Aguiar-Conraria, não quis chamar milagre “ao que se passou desde esse difícil trimestre de 2013, mas parece-me que não temos consciência do muito que fizemos até agora”. O seu artigo no Expresso abre assim: “nos últimos 10 anos, o salário médio real (depois de descontado os efeitos da inflação) subiu mais de 20%. Não é brilhante, mas é substancial e, principalmente, é sustentado”. [Regresso a este texto na nota do editor.]
Outros economistas e políticos têm-se debruçado sobre os dados e a conclusão que ninguém quer tirar é esta: estamos muito melhor do que as “perceções” dizem.
Noutra altura poderemos discutir se o Governo Montenegro tem governado bem, mal ou assim-assim. Aqui o que importa reter é isto: o Primeiro Ministro passou um ano a agitar a conversa pública com os espantalhos das perceções, preterindo sempre a exibição das “Coisas Boas”, fossem herdadas, fossem suas, importa é que são coletivamente nossas, são as deixas que nos fariam sentir bem, no bom caminho, e no momento em que é pessoalmente posto em causa, decide envolver — por ordem de entrada em cena — os seus ministros, o seu partido, os seus deputados, o seu parceiro de coligação, a Presidência da República, o Parlamento, os outros partidos e, sem travão, o eleitorado português, obrigando o país a ser o seu juiz num caso pessoal.
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ÍNDICE
Capítulos abertos:
30 dias de estupefação: a cronologia da crise Montenegro
O que se escreveu à direita
António Barreto, Clara Ferreira Alves, Valentina Marcelino, Pedro Norton
Capítulos reservados a apoiantes:
O que se escreveu ao centro
Sónia Sapage, David Dinis, Carlos Rodrigues, Filipe Alves
O que se escreveu à esquerda
Manuel Carvalho, Daniel Oliveira, Pedro Adão e Silva, Teresa Violante, David Pontes, Marta Moitinho de Oliveira e Vital Moreira
Nota do editor: porque se deixam os governos devorar pelas perceções erradas? Não sabemos governar a abundância?
O que fazem os políticos às suas empresas quando são eleitos?
De May a Scholz, 8 governantes que podiam ter inspirado Luís Montenegro
ATUALIDADE
30 dias de estupefação: a cronologia da crise Montenegro
12 fevereiro 2025: O Governo de Luís Montenegro procede à primeira remodelação, mudando seis secretários de Estado. Silvério Regalado é nomeado Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, substituindo Hernâni Dias.
13 fevereiro 2025: É noticiado que o novo Secretário de Estado, Silvério Regalado, fez ajustes diretos com a sociedade de advogados de Luís Montenegro quando era presidente da Câmara de Vagos. Estes contratos, celebrados entre 2015 e 2021, ascenderam a mais de 200 mil euros . Em janeiro de 2023, Luís Montenegro garantira não existir qualquer conflito de interesses nestes contratos. A Comissão Parlamentar de Ética analisou alguns destes casos envolvendo advogados e concluiu que não configuravam "impedimento" de acumulação com o lugar de deputado, segundo o Estatuto do Deputado então em vigor.
15 fevereiro 2025: O Correio da Manhã noticia que a família de Luís Montenegro tem uma empresa de compra e venda de imóveis, a Spinumviva, da qual o primeiro-ministro foi fundador e gerente. Luís Montenegro nega qualquer conflito de interesses, garantindo que a empresa nunca comprou ou vendeu imóveis ou terrenos, nem beneficiará da nova Lei dos Solos. O líder do PS, Pedro Nuno Santos, exige que Montenegro dê explicações sobre este "caso" e outros envolvendo secretários de Estado.
18 fevereiro 2025: O Chega apresenta uma moção de censura ao Governo, alegando "suspeitas gravíssimas de incompatibilidade" de Luís Montenegro no exercício de funções públicas devido à polémica da empresa familiar. André Ventura ameaçara avançar com a moção caso o primeiro-ministro não desse explicações. Montenegro, a aterrar no Brasil para a 14ª Cimeira Luso-Brasileira, remete esclarecimentos para o debate da moção de censura após o seu regresso, por "respeito" ao Parlamento e à cimeira. Pedro Nuno Santos afirma que o caso da empresa de Montenegro é "muito semelhante" ao que levou à demissão de Hernâni Dias.
19 fevereiro 2025: Pedro Nuno Santos responsabiliza Montenegro pelas "más soluções" no SNS e insiste em explicações sobre a empresa familiar e outros problemas. É noticiado que Montenegro só falará sobre a polémica ao regressar do Brasil na sexta-feira. Montenegro declara-se "muito tranquilo" e remete explicações para o Parlamento.
20 fevereiro 2025: António Lobo Xavier, conselheiro de Estado, defende que Montenegro deve explicações e que doar a quota à mulher (com quem é casado em comunhão de adquiridos) não resolve a situação. Adensam-se as dúvidas sobre a imobiliária. O Parlamento agenda para sexta-feira o debate da moção de censura do Chega. É detalhado o que se sabe sobre a empresa familiar de Montenegro.
21 fevereiro 2025: É noticiado que também o Ministro Adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, deteve participação numa imobiliária até há uma semana, aquecendo o debate da moção de censura. No debate, Pedro Nuno Santos pede esclarecimentos a Montenegro. Montenegro pede para "segurar este grande ativo que é a estabilidade". Recusa que governantes com ações em imobiliárias estejam necessariamente em conflito de interesses. Montenegro descreve a história da Spinumviva no Parlamento, mas deixa várias perguntas do PS e da IL sem resposta. O debate da moção de censura termina.
22 fevereiro 2025: É salientado que o silêncio inicial de Montenegro contribuiu para as manchas na sua credibilidade.
23 fevereiro 2025: O Chega pede respostas a oito perguntas sobre a Spinumviva e ameaça com uma comissão de inquérito.
24 fevereiro 2025: É noticiada a pressão sobre Montenegro devido à "guerra" da Lei dos Solos. Montenegro desabafa no Parlamento sobre "ataques estranhos e violentos" e sugere resistir a "interesses" que o querem condicionar. Pedro Nuno recusa comissão de inquérito para esclarecimentos de Montenegro sobre empresa.
28 fevereiro 2025: O semanário Expresso noticia que a Spinumviva recebe uma avença mensal de 4500 euros do grupo Solverde desde julho 2021. Rui Rocha (IL) diz que Montenegro tem de decidir se quer ser primeiro-ministro ou empresário e deve pedir desculpa. Montenegro garante que nunca decidiu nada em conflito de interesses e anuncia uma "avaliação pessoal e política" e um Conselho de Ministros Extraordinário para sábado, seguido de uma comunicação ao país às 20h00. Pedro Nuno Santos desafia Montenegro a dar todas as explicações para restabelecer a confiança. André Ventura pede a demissão de Montenegro. A Spinumviva divulga clientes, atividades e trabalhadores.
01 março 2025: Após o Conselho de Ministros extraordinário, Montenegro anuncia em comunicação ao país que irá passar a empresa familiar para o nome dos filhos. Abre a porta a uma moção de confiança ao Governo, desafiando os partidos da oposição a dizerem se o executivo tem condições para continuar a governar. O PCP anuncia a apresentação de uma moção de censura. Vários partidos reagem à declaração de Montenegro, com críticas e dúvidas sobre a clareza das suas intenções. Ministros de Montenegro defendem o primeiro-ministro e pressionam o PS sobre a instabilidade.
03 março 2025: O PS anuncia que vai apresentar um requerimento para avançar com uma Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso Montenegro. Este pede à Entidade para a Transparência para auditar as suas declarações. A PGR analisa denúncia anónima sobre a empresa familiar de Luís Montenegro.
04 março 2025: Ex-dirigentes do PSD como Miguel Relvas e Pedro Santana Lopes defendem que a única saída para a crise são eleições antecipadas. IL e PAN criticam o Governo por não ter apresentado a moção de confiança. O PS define o tema do inquérito a Montenegro: exclusividade e registo de interesses. É agendado para quarta-feira o debate e votação da moção de censura do PCP. Marcelo Rebelo de Sousa reúne-se com Luís Montenegro. Aguiar-Branco diz que Montenegro "declarou tudo o que tinha a declarar" sobre a empresa.
05 março 2025: A Assembleia da República discute e vota a moção de censura do PCP, que é chumbada. Montenegro anuncia que o Governo irá avançar com uma moção de confiança. A Entidade da Transparência revela que as declarações de rendimentos e património de Montenegro estão "em verificação". A Spinumviva informa que "está consumada a transmissão por doação de quotas e ativos" para filhos de Montenegro.
06 março 2025: Montenegro, em Bruxelas, anuncia que o Governo já aprovou a moção de confiança. Defende que a legitimidade do Governo deve ser clarificada no Parlamento.
07 março 2025: O Ministro Adjunto admite que Montenegro pode deixar cair a moção de confiança se o PS abandonar a ideia da CPI. Montenegro diz que as dúvidas do Tribunal Constitucional sobre a Spinumviva eram referentes à venda de quotas. Pedro Nuno Santos desafia Montenegro a recuar na moção de confiança. Vereadores do PS e BE exigem esclarecimentos sobre obras da família Montenegro em Lisboa.
08 março 2025: Montenegro afirma que parece não haver alternativa a eleições antecipadas, defendendo que é sua responsabilidade "evitar que Portugal seja um país envolto em lama". Pedro Nuno Santos acusa Montenegro de querer "arrastar para lama" o PSD, o Governo e o país. O PCP insiste que Montenegro se devia ter demitido.
09 março 2025: Uma sondagem indica um empate técnico entre AD e PS, com a AD em perda após o início da crise política. Manuel Alegre (PS) responsabiliza Montenegro e defende eleições. Montenegro garante que "nada, nada, nada" o fará desistir da moção de confiança.
10 março 2025: O PS submete requerimento potestativo para a criação de uma comissão de inquérito aos negócios de Montenegro, com o objetivo de avaliar o cumprimento das regras e a prevenção de conflitos de interesses. Montenegro assume que clientes procuraram a Spinumviva por sua causa. Augusto Santos Silva (PS) considera Montenegro o "único responsável" pela crise e critica a "apatia" de Marcelo. Montenegro reconhece ter cometido "alguns erros" na gestão da crise. O PS não viabiliza a moção de confiança. Bloco e Chega não ficaram satisfeitos com as respostas de Montenegro às suas perguntas.
11 março 2025: outra sondagem indica uma subida do PS para os 30,8% e descida da AD para os 25,8%, ou seja, com os socialistas a vencerem por margem confortável e acima de uma das fasquias aceites como diferenciadoras de legitimidade, os 30%. Parlamento debate e vota moção de confiança.
O que se escreveu à direita
António Barreto no Público: “A presente crise de governo, de partidos, de instituições democráticas e de estabilidade não resulta de agitação social, de problemas económicos graves e repentinos, de perturbações internacionais e financeiras, nem de qualquer desastre sanitário, climático ou natural. Pelo contrário, é a crise política, o protagonismo dos políticos, a autoridade política e a condução política do Estado e da nação que criam ou vão criar problemas económicos e financeiros, debilidade institucional, vulnerabilidade democrática e desordem social. E também é a crise política que provoca dois dos fenómenos mais nefastos da vida nacional: a abstenção (ou desinteresse) e o Chega.”
Clara Ferreira Alves no Expresso: “Como os diferentes episódios da degenerescência da política clássica são múltiplos, diários e encenados em diversas plataformas, a diluição da gravidade dos factos e atos está assegurada. E assim, a pouco e pouco, a democracia não morre na escuridão, como apregoa o defunto “Washington Post”, mas em risadas ou insultos das redes. Se toda a gente tem uma opinião, qual a opinião maior?
No posto, posta em sossego vigilante, a extrema-direita europeia assiste ao suicídio coletivo e espera a hora. Disse a AFD. Tem dito Marine Le Pen. Nem precisará de impor sacrifícios, esse trabalho será feito pelos antecessores. Chegará ao poder com o caminho desbravado pelas catanas da austeridade e da emergência e limitar-se-á a administrar a fúria, o desassossego e o descontentamento que provocarão. Por essa altura, o Estado social terá começado a ser desmantelado. Não à bruta, à Elon, com algum método e justificação moral.
Em Portugal, um país perpetuamente empobrecido, também acontecerá. Pedro Passos Coelho disse há pouco tempo que a sua hora ainda não tinha chegado. Só dependerá dele.”
Valentina Marcelino no Diário de Notícias: “É caso para perguntar se Montenegro não estará politicamente ferido de morte, arrastado por todas a desfuncionalidades de um sistema que tinha obrigação de melhorar em nome da transparência e, principalmente, da credibilidade. Da sua, da dos políticos e da Democracia.”
Pedro Norton no Público: “Há sempre quem prefira a chicana política ao esclarecimento dos factos. Há evidentemente quem se norteie mais por calculismos de curto prazo do que uma defesa desinteressada do regime. O que peço é mais prosaico e mais factível. Limito-me a sugerir que o cidadão comum, nada interessado numa nova crise política, porventura até satisfeito com a ação governativa e, nessa medida, particularmente disponível para ser convencido, merece ser tratado como um adulto modicamente inteligente e precisa que, sobre este caso, de uma vez por todas, não sobrem quaisquer dúvidas razoáveis.”
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