[1.13] O que esperar do maior ano eleitoral da História? (Spoiler: recuo da globalização)
Mais de 40 países vão a votos em 2024. Na UE o medo da extrema-direita é uma profecia autorrealizável. Fora dela existem outros medos: comércio livre global a recuar, a guerra a aumentar.
2024 é um ano peculiar. Entramos nele assustados e pessimistas. E vamos a votos. 3.200 milhões de cidadãos votam em presidenciais e legislativas. De olhos postos no recuo do comércio livre mundial às mãos dos senhores da guerra e dos políticos nacionalistas. Até o problema da extrema-direita e do recuo da democracia é secundarizado pelas mudanças geopolíticas em curso.
Analisamos o assunto nesta edição, dedicada quase exclusivamente ao calendário eleitoral e ao que está em causa. E nas próximas seguiremos de perto as mais significativas eleições, com ênfase natural nas que mais importam ao cidadão português e europeu. VamoLáVer terá uma secção regular “ELEIÇÕES” com análises e projeções. Mais uma razão para assinar!
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ANÁLISE
O que esperar do maior ano eleitoral da História? (Spoiler: recuo da globalização)
Começa com as presidenciais no Bangladesh no próximo dia 7 de janeiro e estende-se até às presidenciais do Gana em 7 de dezembro: 2024 é tido como o Maior Ano Eleitoral da História, com 4.200 milhões de eleitores a irem às urnas em 83 atos eleitorais em 70 países. Mesmo retirando as eleições regionais e locais, ficamos com 3.200 milhões de cidadãos a votarem em eleições nacionais (presidenciais e legislativas) em 40 países – isto excluindo as Europeias, que levam às urnas cerca de 400 milhões de eleitores dos 27 países da União, dezenas de milhão dos quais, como os portugueses, votam também nas nacionais dos seus países.
A importância de vários sufrágios, das europeias às presidenciais americanas passando por México, África do Sul, Índia e Irão, terá começado por atrair as atenções, em especial nos media europeus. A verdade é que todos os anos se realizam dezenas de atos eleitorais em todo o mundo, envolvendo milhares de milhões de cidadãos. Mesmo os que deram origem à vaga de artigos sobre o assunto, como foi o caso da Bloomberg, não invocaram esse estatuto: o título da Bloomberg é “Brace for Elections: 40 Countries Are Voting in 2024” e o tom do artigo é o das mudanças tectónicas que podem decorrer dos votos, numa altura em que as guerras estão de volta e a geopolítica suplanta (e até ameaça) o comércio livre global (o que conhecemos como “globalização” está em retração).
O ano político é tão complexo que é difícil encontrar consensos numéricos: conforme as fontes decidam contabilizar o que é um ato eleitoral relevante, temos entre 40 a 70 países e entre 3.200 milhões a 4.200 milhões de eleitores. E mesmo as fontes mais inclusivas ignoraram algumas eleições nacionais mesmo em países da UE ou candidatos, talvez por serem menos relevantes, casos gritantes de Malta, Eslováquia, Croácia e Lituânia.
Mas surgem dois consensos. Um resulta da percepção da importância das eleições, validada pelos contextos específicos, o da democracia em perigo e o do regresso dos nacionalismos — com o que tal implica em liberdade de movimentos global, de pessoas e bens.
O outro diz respeito à expectativa: a maratona eleitoral deixará o mundo menos democrático e com as autocracias reforçadas, esperando-se em geral o avanço da extrema-direita cavalgando o populismo, a limitação dos direitos, sobretudo das diversas minorias, e na UE o euroceticismo de direita (e apenas esse) a ganhar terreno, o que poderá influenciar o futuro do bloco europeu.
O medo é maior do que o monstro
Contudo, devo à honestidade intelectual este aviso: a expetativa do avanço da extrema-direita na Europa tem contornos de profecia autorrealizável e decorre em larga medida de uma leitura enfatizada (pela impressão que causa o regresso de ideias que considerávamos extintas) dos resultados e da projeções. É maior o medo que o monstro — o monstro existe e tem crescido e é perigoso mas ainda não tem capacidade para devorar a aldeia.
O tom geral é de um “banho de sangue” (John Kampfner na Foreign Policy) mas no fim do ano podemos estar a falar apenas de uma série de contratempos que no essencial não travam, nem descarrilam, processos em curso como o da manutenção da importância geopolítica dos EUA ou — mais próximo de nós — o alargamento e consolidação da União Europeia.
Chamo a atenção para esta conclusão do relatório The Global State of Democracy 2023 (link abaixo): “o estado global da democracia em 2023 é complexo, fluido e desigual. Em todas as regiões do mundo, a democracia continuou a contrair-se, com declínios em pelo menos um indicador de desempenho democrático em metade dos países abordados no relatório. Medido em termos de áreas de melhoria e declínio dentro de cada país, 2022 foi o sexto ano consecutivo em que mais países experimentaram declínios líquidos nos processos democráticos do que melhorias líquidas. Em resumo, a democracia ainda enfrenta problemas, no melhor dos casos estagnada e, em muitos lugares, declinante. Mas há alguns sinais de esperança (notadamente, a queda da corrupção e níveis surpreendentemente altos de participação política). De facto, enquanto O Estado Global da Democracia 2023 mostra alguns declínios em países que se pensava terem democracias saudáveis, ao mesmo tempo houve melhorias encorajadoras em países onde o nível de opressão tem sido constante por anos.”
Restringindo a análise ao que interessa ao cidadão europeu, as eleições no horizonte têm indicadores maus, bons e assim-assim. Não é possível, nesta altura, prever todos os desfechos, mas alguns estão até anunciados e outros têm grandes probabilidades de acontecerem. Podemos dividi-los assim:
Maus para a democracia
recondução do presidente ditador do Azerbaijão (membro do Conselho Europeu), Ilham Aliyev, oposição perseguida e silenciada
recondução do presidente ditador da Rússia, Vladimir Putin
possível vitória de Donald Trump nas presidenciais dos Estados Unidos virá enfraquecer o sistema americano e a liderança global do país, além de reforçar a importância da Rússia e deixá-la anexar território que atualmente pertence à Ucrânia
possível vitória do Vlaams Belang (VB, extrema-direita) nas eleições federais da Bélgica (no mesmo dia das europeias)
Desagradáveis para muitos democratas mas não forçosamente maus
expectável crescimento da extrema-direita em Portugal, sendo incerto que venha a influenciar o governo
grupo de eurodeputados da extrema-direita (ID, cá o CH) poderá ser o terceiro maior e desalojar os liberais (Renew, cá a IL) do papel-charneira entre as duas forças que continuarão a “mandar” na UE, PPE (cá a AD, a presidente da CE, Ursula von der Leyen, que deverá ser reconduzida) e S&D (cá o PS)
vitória de Narendra Modi na Índia significa o reforço do autoritarismo no país, mas tranquiliza o “ocidente” por a Índia se manter como um contra-peso ao domínio asiático da China
Bons para a democracia
provável vitória do Partido Trabalhista significará um volte-face no Reino Unido e o abandono definitivo da deriva populista que desgraçou a economia e isolou o país, devolvendo pelo menos a confiança
provável vitória de Lai Ching-te nas presidenciais de Taiwan reforçará a ligação do país ao “ocidente” e irritará a China, mas ao mesmo tempo aumentará a tensão dos EUA com a China e a possibilidade de um conflito na zona
O que está verdadeiramente em causa?
A ascensão da extrema-direita é uma preocupação essencialmente europeia. Nas Américas, do Norte como do Sul, em África ou na Ásia, esse é um assunto secundário, quando existe. Quando falamos de Donald Trump poder vencer as presidenciais americanas, as preocupações são muito diferentes das europeias, onde basicamente se teme o impulso que tal virá dar ao grupo de Ventura, Wilders e Le Pen.
Em África, onde diversos países (incluindo um próximo pela História, Moçambique) vão a votos, o que está em causa é a resistência à guerra, o desenvolvimento económico e as relações comerciais com os blocos chinês, europeu e estado-unidense.
A guerra é de resto um dos dois temas centrais do que verdadeiramente está em causa no ano eleitoral: até que ponto os votos vão reforçar os candidatos nacionalistas e isolacionistas, e para que bloco pendem. O apoio à Ucrânia surge como a pedra de toque. Nas europeias, como noutras eleições nacionais na União, o reforço dos partidos da família de extrema-direita ID significa diminuir o apoio. Nos EUA Trump basicamente entregará a Ucrânia a Putin e esvaziará a NATO (e as Nações Unidas).
Outra preocupação de topo é o comércio mundial. O que temos como a “globalização” já está a sofrer um recuo e poderá mesmo, no limite, desaparecer. O comércio livre global tem contra si duas poderosas forças combinadas. As guerras de forma direta (desvio de recursos para o esforço de guerra) e indireta (rotas comerciais atacadas por piratas obrigam a caros desvios) afetam tanto como as restrições já impostas mas sobretudo anunciadas por governantes nacionalistas e defensores do isolacionismo.
As disputas eleitorais são, assim, seguidas por diversos ângulos consoante a geografia, mais do que a ideologia ou os valores democráticos.
Lista das eleições significativas
7 janeiro - Bangladesh, presidenciais
13 janeiro - Taiwan, presidenciais
28 janeiro - Finlândia, presidenciais
4 fevereiro - Portugal, legislativas Açores
4 fevereiro - El Salvador, presidenciais e legislativas
7 fevereiro - Azerbeijão, presidenciais
8 fevereiro - Paquistão, legislativas
14 fevereiro - Indonésia, presidenciais
18 fevereiro - Espanha, legislativas Galiza
25 fevereiro - Bielorrúsia, legislativas e municipais
25 fevereiro - Camboja, senado
25 fevereiro - Senegal, presidenciais
1 março - Irão, legislativas
10 março - Portugal, legislativas
17 março - Rússia, presidenciais
31 março - Ucrânia, presidenciais
10 abril - Coreia do Sul, legislativas
24 abril - Macedónia do Norte, legislativas
5 maio - Panamá, presidenciais
12 maio - Lituânia, presidenciais
19 maio - República Dominicana, presidenciais e legislativas
1 junho - Islândia, presidenciais
2 junho - México, presidenciais
6 junho - UE, europeias
9 junho - Bélgica, legislativas
28 junho - Mongólia, legislativas
15 julho - Ruanda, presidenciais
22 julho - Croácia, legislativas
6 outubro - Lituânia, legislativas
9 outubro - Moçambique, presidenciais e legislativas
26 outubro - Geórgia, legislativas
27 outubro - Uruguai, presidenciais e legislativas
5 novembro - EUA, presidenciais
7 dezembro - Gana, presidenciais
abril ou maio - Índia, legislativas
agosto - Espanha, legislativas País Basco
dezembro - Croácia, presidenciais
julho - Macedónia do Norte, legislativas
novembro - Roménia, presidenciais e legislativas
novembro - Moldova, presidenciais
novembro - Sri Lanka, presidenciais
? - Reino Unido, legislativas
? - Venezuela, presidenciais
? - Mali, presidenciais
? - Mauritânia, presidenciais
? - Burkina Faso, presidenciais
? - Chade, presidenciais
? - Sudão do Sul, presidenciais
? - África do Sul, presidenciais
? - Guiné Bissau, presidenciais
? - Tunísia, presidenciais
? - Botswana, legislativas
? - Maurícias, legislativas
? - Togo, legislativas
? - Namíbia, presidenciais
? - Jordânia, parlamentares
? - Argélia, presidenciais
Fontes e leituras para aprofundar
Right-Wing Populism Is Set to Sweep the West in 2024 (Foreign Policy)
2024: Cinco eleições que vão ter impacto na União Europeia (Euronews)
Brace for Elections: 40 Countries Are Voting in 2024 (Bloomberg)
The Ultimate Election Year: All the Elections Around the World in 2024 (Time)
The Global State of Democracy 2023. The New Checks and Balances (IDEA, PDF)
CURTAS
Saleh al-Arouri, número dois do Hamas, foi morto num ataque israelita em Beirute, conforme anunciado pelo próprio movimento palestiniano através do canal Al-Aqsa TV. • Lusa
O vice-primeiro-ministro de Cabo Verde assegurou que o Orçamento de Estado para 2024 irá focar-se na estabilidade inflacionária, rendimentos e macroeconomia, apelando ao empenhamento nacional. • Lusa
O ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Israel Katz, declarou estar o país numa terceira guerra mundial contra o Irão e o islamismo radical, tendo como meta derrubar o Hamas. • TSF
Sobreviventes de um ataque do Hamas durante um festival musical em Israel pediram uma indemnização de 50 milhões de euros ao Estado, alegando negligência na segurança. • Lusa
Pedro Nuno Santos e José Luís Carneiro chegaram a acordo para formar listas de unidade nos órgãos nacionais do PS pós-eleições internas. • TSF
Nadia Calviño foi nomeada presidente do Banco Europeu de Investimento e Ricardo Mourinho Félix deixou a vice-presidência do mesmo banco. • Expresso
O exército marroquino deteve mais de 1.100 migrantes a tentar alcançar as cidades espanholas de Ceuta e Melilla na passagem de ano. • Euractiv
Os membros do partido liberal Free Democrats da Alemanha votaram para permanecer na coligação governamental, apesar do escasso apoio obtido na votação interna. • AP
A Etiópia assegurou o acesso ao Mar Vermelho através de um acordo com Somalilândia, utilizando o porto estratégico de Berbera, num contexto de tensões regionais. • AllAfrica
ETIQUETAS
Uma ópera
It’s Not Over Until The Soprano Dies, São Luiz, Lisboa, 12 a 14 janeiro 2024.
“A Mala Voadora recria finais de óperas em que morrem personagens femininas, centrando essa recriação nessas personagens e nas árias que cantam. E fá-lo intensificando a quantidade e a vertigem dessas mortes até que seja impossível não considerar a subjugação e o sofrimento que elas de facto implicam, para além da sua sedução operática. Uma ópera feminista.”
Um espetáculo musical
Sophia (ou a mulher-palavra-mar-dança-nas-nossas cabeças-construindo-cidades-e-utopias), São Luiz, Lisboa, 18 a 21 janeiro 2024. “Começou por ser uma oficina e agora é um quase-disco. A obra e universo de Sophia de Mello Breyner, aqui revisitados em 8 temas originais, onde a liberdade da poesia e do mar se cruzam para fazer emergir a utopia das cidades, da folha em branco sinónimo de construção de um mundo novo. Um projeto musical de Ana Bento e Bruno Pinto (Gira Sol Azul), entrecruzado com as visões e versões cénicas de Joana Craveiro.”
Um livro
Como morrem as democracias, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt , trad. Jorge Mourinha, Vogais, 3ª ed. 2023. “Um olhar revelador sobre o fim das democracias em todo o mundo - e um guia para as resgatar”