[0.0.2] Fim político de Costa deixa país num imbróglio
A inevitável demissão do PM na sequência da embrulhada do lítio deixa o Orçamento para 2024 no limbo, com um PR diminuído, um líder da oposição sem programa alternativo e refém da extrema-direita
Quem havia de dizer que o segundo número zero desta newsletter, que ainda está em testes, havia de ter como principal assunto o fim político do homem que inspirou o nome de VamoLáVer e que mudou a política portuguesa de duas formas (libertou os partidos de esquerda do gueto fora da governação e limpou as finanças públicas)?
Bem: não eu, decididamente. O caso lítio apanha o país de surpresa. De várias formas e abrindo um leque de interrogações sobre o que sucedeu e como sucedeu. Este dia ficará na História como de charneira: tudo se alinha para um novo ciclo no país com a direita e a extrema-direita no governo e as implicações que isso terá na economia, nos problemas do Estado e na arrumação da esquerda. Vamos ver se o “momento bonito” da marca Portugal resiste a este cataclismo, à medida que os meios internacionais noticiam o assunto.
O acontecimento
A investigação do Ministério Público foi surpreendente. Desta vez não houve fugas para os jornais amigos nem câmaras para captar as cinco detenções e 17 buscas feitas numa única manhã.
Os acontecimentos precipitaram-se com extrema rapidez: decorreram menos de seis horas entre a primeira notícia (“buscas em processo que envolve João Galamba, Matos Fernandes e Lacerda Machado”, registei na SICN às 8:56) e a demissão de António Costa no Palácio de S. Bento às 14:24.
É a primeira vez que um PM em exercício se demite por ser alvo de uma investigação judicial, é a primeira vez que um ministro em exercício é constituído arguido. Vê os números da investigação mais abaixo. É um caso sério [finalmente, MP].
Os factos
António Costa apresentou a demissão do cargo de primeiro-ministro. A demissão ocorreu após uma investigação sobre os negócios de lítio e hidrogénio verde
Foram realizadas buscas pela PSP em diversos ministérios e na residência oficial do primeiro-ministro, relacionadas com a exploração de lítio em Montalegre
Cinco pessoas foram detidas, incluindo o chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária; o consultor Diogo Lacerda Machado; o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas; e dois executivos de empresas
Partidos políticos reagiram à situação: CDS pediu a demissão imediata de Costa; PAN e Chega pediram a demissão de João Galamba; IL sugeriu que Marcelo Rebelo de Sousa dissolvesse o Parlamento caso Costa não se demitisse; PCP e Bloco pediram cautela; Livre exigiu esclarecimentos
A Procuradoria-Geral da República confirmou que João Galamba é arguido e que António Costa será investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça
O MP justificou os mandados de detenção emitidos como prevenção contra fuga, continuação da atividade criminosa, perturbação do inquérito e perturbação da ordem pública
O Presidente da República aceitou a demissão do primeiro-ministro e anunciou que vai receber os partidos políticos esta quarta-feira e convocar uma reunião do Conselho de Estado para proceder à dissolução da Assembleia da República, falando ao país posteriormente na quinta-feira seguinte
Bolsa de Lisboa caiu perto de 3%, juros da dívida pública permanecem estáveis após anúncio da demissão.
A investigação
Estão a ser realizadas diligências de busca no âmbito de um inquérito dirigido pelo Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
As buscas visam a identificação e apreensão de documentos e outros meios de prova.
Estão a ser investigados possíveis crimes de prevaricação, corrupção ativa e passiva, tráfico de influência, relacionados com concessões de exploração de lítio e projetos em Sines.
Surgiu conhecimento da invocação indevida do nome e autoridade do Primeiro-Ministro para desbloquear procedimentos, o que será analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Os números da investigação
17 buscas domiciliárias
5 buscas em escritório e domicílio de advogado
20 buscas não domiciliárias
17 magistrados do Ministério Público envolvidos nas buscas
3 magistrados judiciais envolvidos nas buscas
2 representantes da Ordem dos Advogados envolvidos nas buscas
Cerca de 145 elementos da Polícia de Segurança Pública (PSP) envolvidos nas buscas
9 elementos da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) envolvidos nas buscas
Duas certezas
Há já algumas certezas.
Fim político de António Costa. Disse na demissão que esta é “uma etapa da vida que se encerra” e referia-se à política nacional. Mas se tinha ambições europeias, bem pode arrumá-las.
Eleições antecipadas. O PR parece não ter alternativa. Seja pelo seu compromisso anterior, seja pela intensidade dos pedidos dos partidos de direita e extrema-direita (à exceção do PSD, que não se tinha pronunciado à hora de fecho), seja pela tremenda pressão dos grupos interessados em alterar os beneficiários do Orçamento de Estado. Os partidos de esquerda não contam para Marcelo e o PS está fragilizado.
Uma dúvida
Viragem eleitoral à direita. O ciclo virtuoso português de centro-esquerda moderada está em inferioridade numérica no espaço da União. O populismo lavrou o caminho, as duas guerras vincaram os sulcos do esmagamento de direitos e a derrocada moral que é agora atribuída com alguma legitimidade ao PS faz o resto: vem aí o ciclo da direita com a extrema-direita ao ombro, que é visível em grande parte da UE.
Fontes: Público, Renascença, SIC-N, DN, Lusa, RTP, Ministério Público.
Nota editorial
Este é o segundo número zero de VamoLáVer. No antigo jornalismo, um número zero é um número de testes ou ensaio. Na programação informática a numeração iniciada por zero indica igualmente um estado prévio, uma sucessão de estudos, de versões, até ao dia em que passa à versão 1.0.0 — a primeira versão estável e perdurável.
Conto produzir uma dezena de números zero. Ao longo deste período experimentarei formatos de narrativa, mais curtos, mais longos, sempre à procura de acrescentar valor pelo lado do conteúdo selecionado e curado e pela forma económica de aquisição da informação por ti, leitora.
Do primeiro para o segundo número mediaram poucos dias mas muitos, muitos novos subscritores e subscritoras. O mais provável é que sejas uma delas. Desde já: obrigado!
Além dos mecanismos de comentário que o Substack disponibiliza nos posts podes SEMPRE e em qualquer ocasião intergir: estou à distância de um email, para bem vindas críticas construtivas ou palavras de incentivo.
Espero que esta edição te agrade e te faça abrir os próximos números. (E partilhar, que é atualmente a forma de me recompensares.)
BREVES
🇷🇺 MOSCOVO. PUTIN FOREVER. O presidente da Rússia decidiu concorrer às presidenciais de Março próximo, uma decisão que o manterá no poder até pelo menos 2030. Embora muitos diplomatas, espiões e funcionários tenham dito que esperam que Putin permaneça no poder para toda a vida, até agora não havia nenhuma confirmação dos seus planos. Diplomatas afirmam que não existe um rival sério que ameace Putin nas urnas. O ex-espião da KGB goza de uma taxa de aprovação de 80%, pode contar com o apoio do estado e dos media estatais, e quase não há oposição pública mainstream ao seu governo contínuo. Putin, 71 anos, a quem Boris Yeltsin entregou a presidência no último dia de 1999, já serviu como presidente por mais tempo do que qualquer outro governante russo desde Josef Stalin, superando até mesmo os 18 anos de mandato de Leonid Brezhnev.
[Na União temos de contar com o imperialismo russo pelo menos até ao fim de Putin, o que pode demorar mais uma década, nas calmas.]
Fonte: Reuters
🇨🇿🤝 PRAGA: COMPROMISSO AFRICANO. Antes da sua deslocação ao continente africano, o Primeiro-Ministro da República Checa, Petr Fiala, reconheceu que a Europa e o seu próprio país subestimaram a cooperação com a África, enfatizando que estão a trabalhar para mudar essa realidade, com um enfoque especial em questões económicas e políticas.
Três pontos com maior impacto político:
Revisão Estratégica Europeia: Fiala evidencia que a Europa, incluindo a República Checa, necessita de alterar substancialmente a sua abordagem para com África, o que implica uma revisão das estratégias europeias de cooperação internacional
Competição Geopolítica: A menção à crescente influência da Rússia e da China em África configura um desafio geopolítico significativo que a Europa enfrenta, levando a uma necessidade de reengajamento europeu no continente para equilibrar essa influência.
Questão Migratória: Fiala destaca que a migração é uma das questões-chave nas relações UE-África e sublinha a importância de dialogar com uma gama alargada de países africanos para abordar os fluxos migratórios ilegais para a Europa, evidenciando a complexidade e a relevância do tema na política externa europeia.
Fonte: Euractiv
🇪🇸😓 MADRID: IMPASSE NAS NEGOCIAÇÕES. As negociações para a investidura de Pedro Sánchez como Primeiro-Ministro da Espanha encontram-se num impasse, com um acordo entre o PSOE e Junts por la República ainda pendente e a data para o processo parlamentar indefinida. Estando em jogo a formação de um novo governo em Espanha, as reuniões prosseguem em Bruxelas sob a liderança de Santos Cerdán, Secretário de Organização do PSOE, enquanto questões técnicas e de constitucionalidade retardam o entendimento entre as partes envolvidas. Os desdobramentos dessas negociações têm implicações importantes para a União Europeia (UE), nomeadamente:
Estabilidade Política na Espanha: Estando entre os países mais influentes da UE, a estabilidade política interna é crucial para o equilíbrio de poder dentro do bloco europeu. Atrasos na formação do governo podem afetar a participação da Espanha em decisões da UE e a execução da sua agenda política.
Influência dos Movimentos Separatistas: A participação do partido Junts, defensor da independência da Catalunha, pode ter implicações na política interna europeia em relação aos movimentos separatistas, que são um tema sensível em vários Estados-membros e para a coesão da UE.
Relações entre Membros da UE: A presença de Carles Puigdemont, a figura proeminente do independentismo catalão, e as interações do PSOE com políticos em Bruxelas ressaltam as tensões entre membros da UE acerca de questões internas. Como as questões de independência podem ter ressonância em outros Estados-membros, a abordagem às negociações pode estabelecer um precedente e influenciar futuras relações internas da UE.
Fonte: El Plural